Artigos

Print Friendly, PDF & Email

 por Fernando Barrichelo

O resgate ao pensamento crítico

– Fernando, na sua empresa, como você distingue uma pessoa arrogante de uma pessoa assertiva? Como você distingue um humilde de um passivo

Quem me perguntou isso foi Edson (nome fictício para preservar a identidade), um dos jovens com autismo presente numa palestra que fiz na Specialisterne, instituto que prepara jovens diagnosticados com TEA (Transtornos do Espectro do Autismo) a entrarem e se adaptarem no mercado de trabalho.

O que eu estava fazendo lá? A Specialisterne e a AON estão avaliando uma parceria para inclusão de prossionais com autismo no mundo corporativo. No lugar de descrever alguns possíveis perfis de vagas, primeiro fui conhecê-los pessoalmente e aproveitar para transmitir algumas dicas para uma carreira bem-sucedida.

Mas o que aconteceu lá foi o inverso – aprendi mais do que ensinei. Voltei encantado com o que testemunhei. Por isso, resolvi fazer um pequeno relato.

Quem são eles

Encontrei jovens, predominantes homens, de 18 a 30 anos, todos diagnosticados com autismo, síndrome de Asperger e similares. Chama-se “transtorno do espectro” porque o TEA é definido como um conjunto de comportamentos que afeta cada indivíduo em grau variável. No entanto, há características em comum, como dificuldades na interação social e nas habilidades de comunicação.

Mas uma coisa me intrigou. Durante a palestra, eles interagiram absurdamente bem, com excelentes perguntas. A maioria daqueles jovens concluiu a faculdade. Então, se conseguiram sobreviver com sucesso até aqui, porque precisariam de mais ajuda do instituto? Inclusive um deles, no mesmo dia a tarde, me achou no Linkedin e escreveu a seguinte nota:

O Marcelo Vitoriano e Glaucia Ribeiro, responsáveis pela organização, explicaram o seguinte. Mesmo como uma razoável performance emocional e social nas escolas e nos lares, infelizmente é insuficiente para o mundo nas empresas. A grande dificuldade destes jovens-adultos é passar numa entrevista ou dinâmica de grupo. (Veja uma reportagem interessante da TV Globo sobre isso). Numa competição com muitos candidatos e poucas vagas, eles possuem certas desvantagens devido suas particularidades.

Marcelo deu alguns exemplos reais sobre como a típica e extrema sinceridade lógica pode atrapalhar. Certa vez, um entrevistador, ao notar no currículo uma ausência de descrição profissional ou educacional em certo ano, perguntou:
– No seu CV, você não diz o que você fez em 2014. O que aconteceu?
– Ah, nesse ano eu tive depressão. (E ponto, silêncio… resposta dada, com maior tranquilidade).

Outro exemplo comprova que, no dia a dia no ambiente de trabalho, alguns momentos podem ser constrangedores. Uma colaboradora senta ao lado de um funcionáriocom autismo que lhe dá uma ótima explicação para um tema complexo. Ela desabafa:
– Nossa… claro… como sou burra. (Rindo)
– Não se preocupe, conheço pessoas mais burras que você. (Seriamente, tentando consolá-la).

Agora, se eles carecem de habilidades sociais, a inclusão social nas empresas deve ser por caridade? Não, absolutamente o contrário. Os jovens com autismo possuem vantagens competitivas muito superior você, leitor.

Os especialistas

Em dinamarquês (origem do instituto), a palavra Specialisterne significa “os especialistas”. Neste contexto, a inclusão da pessoa com autismo no ambiente de trabalho é devido o auto grau de especialização em certos aspectos que, na prática, minimizam os seus pontos fracos.

Os indivíduos com autismo são acima da média quando se trata de concentrar-se durante longos períodos de tempo, persistir em tarefas ou ações repetitivas, reconhecer padrões, detectar desvios em dados, informação e sistemas, prestar muita atenção aos detalhes e aperfeiçoar os processos. Eles são apaixonados pelos detalhes.

Devido a essas valiosas características, os pessoas com autismo são imbatíveis em alguns serviços de TI, como:

  • Execução e automatização de testes de softwares, detectando erros que para outros passam despercebidos.
  • Processamento de dados e documentos tipicamente repetitivos, com um alto rendimento e qualidade e mantendo sempre os mesmos critérios.
  • Desenvolvimento e no dia a dia das operações de software, seguindo processos muito complexos ou uma grande sistematização.

Várias empresas já contratam pessoas com autismo no Brasil e no mundo devido essas qualidades. Como diz o vídeo abaixo, “transformamos características negativas do autismo em habilidades que poucas pessoas podem dispor em seu currículo”.

O grande aprendizado: qual a conjunção?

Após da palestra, Júlia, uma das alunas, me procurou para tirar algumas dúvidas:

– Oi Fernando, tenho algumas perguntas.
– Claro!
– Você poderia dizer a conjunção entre TEORIA e PRÁTICA?
Improvisei uma resposta dizendo que ambas são necessárias. A teoria isolada não é muito útil pois precisamos dar um sentido funcional a ela. A prática sozinha também não é muito útil pois precisamos de explicação de como as coisas funcionam para replicá-la corretamente.

– Ah, ok. Mas você poderia dizer a conjunção entre TEORIA e PRÁTICA?
Pausa. Por segundos pensei que ela não entendeu, ou eu não me fiz entender. Então repeti com outras palavras.

Mesmo assim, ela perguntou, de forma séria pela terceira vez, com o mesmo tom de voz da primeira:
– Você poderia dizer a conjunção entre TEORIA e PRÁTICA?
Neste momento eu olho confuso para ela… Será que fui eu que não entendi a pergunta?

Ela tenta me ajudar.
– Eu gostaria de saber a “conjunção” dessas duas palavras: é E ou OU?

Nossa… Nesse momento vem à minha cabeça o conceito de conjunção nas aulas de matemática no colégio.

(Abre Parêntesis)
Uma conjunção é uma operação na lógica matemática relacionada a interseção de conjuntos. Toda conjunção é representada por um conectivo lógico (por exemplo, E ou OU). Assim, um elemento está na intersecção dos conjuntos apenas se for verdade que está em ambos.
O “E” serve para conectar duas afirmações e traz consigo o sentido de simultaneamente, isto é, as duas afirmações devem ocorrer ao mesmo tempo. O “OU” serve para conectar duas afirmações e carrega consigo o significado de que apenas uma das afirmações ocorre. Confira mais detalhes no link1 e link2.
(Fecha Parêntesis)

Júlia queria apenas uma simples resposta E ou OU, e não toda aquela explicação que forneci. Respondi, de forma confiante:

– Ah, claro. A resposta é E.
Ela fez cara de dúvida, não sabia se concordava. Então, desenvolve um conceito de que a TEORIA possui fundamentos coletivos, pois a humanidade evoluiu devido com transmissão do conhecimento teórico entre gerações. A PRÁTICA é um conhecimento muito individual. Assim, ela continuava com dúvidas se era E ou OU.

Evidentemente, não travei nenhum discussão com ela além disso. Apenas respondi: ah, claro. Gostei do pensamento dela, mas imaginei que o assunto iria acabar por ali.

Entretanto, ela mostra um caderno onde fez várias anotações durante a palestra. Uma das páginas possuía uma lista de 10 pares de palavras para que eu responder E ou OU. Eram três colunas já previamente preparadas: palavra 1, espaço para preencher, e palavra 2. Assim:

Fui respondendo rapidamente de bate-pronto: E, OU, E, E, OU, etc. Já estava gostanda da menina. Ela queria entender as relações entre os conceitos – se eram congruentes ou excludentes.

Persistência e/ou lógica

Até que chegou na última questão:
– Qual a conjunção entre PERSISTÊNCIA e LÓGICA? (Respondi E, já atordoado).
– Humm.. Não sei se concordo. Sabe o último vídeo que você mostrou na palestra? Sobre aquela menina pulando, tentando alcançar o banquinho? Se a resposta for E entre Persistencia e Lógica, então o vídeo é ilógico.

– Nossa, por que? 
Neste momento, ela me conquistou ainda mais. Além do simples exercício lógico entre duas palavras numa lista, ela tentava ver o mundo de forma mais crítica com alguns fundamentos.

Leitor: antes de continuar o texto para ver a resposta dela, se você não sabe qual é o vídeo, assista abaixo.

 

Ela então explica:
– Ela apenas ficava pulando e pulando. Isso é persistência. Mas ela não refletia sobre os erros. Ela não prestava atenção na angulação da perna nem na força do impulso. Ela simplesmente repetia os mesmos erros, tentando, tentando. Ou seja, não usava a lógica. Portanto, a resposta não pode ser E, e sim OU.

Dei um enorme sorriso. Repliquei: continuo achando que a conjunção entre PERSISTÊNCIA e LÓGICA é E de forma geral. No caso, o vídeo mostra uma criança; ela ainda não tem capacidade completa de aprender com os erros de forma lógica, e por isso ela estava com o pai ao lado, como um professor. (Bem, está certo que há muita gente adulta que não usa a lógica para persistir… risos)

Ao escutar isso, após uma longa reflexão, ela responde:
– É…. pode ser… então isso me faz pensar em uma última pergunta. Posso? Qual a conjunção entre PROFESSOR e TREINADOR?

Respondi E. Ela não concordou. Pensei: lá vamos nós tudo de novo, mas adorando a conversa. Quase puxei um banquinho. Ela explica:
– O professor é uma pessoa baseado apenas em dar respostas. O treinador é baseado no desenvolvimento. O pai dela no vídeo estava sendo um treinador, e não professor.

A angústia por relações

Fiquei bem impressionado. Identifico uma série confusões em todo o seu discurso, mas aprecio o seu olhar crítico sobre as situações do cotidiano, a relação entre os conceitos, etc. Ela mostrou uma outra página do caderno com uma série de diagramas que ele foi desenhando a medida que eu progredia com a palestra: causa e efeito, premissas e conclusões, etc. Ela me disse:
– Eu analisei sua palestra. Veja. Ela foi muito lógica. Parabéns. (Ploft!)

Uma pena que essa análise crítica do mundo seja, talvez, tão exagerada que a deixa “angustiado“. Essa foi a palavra que ela usou para desabafar de forma muito sincera, transparente e um pouco emocionada:

– Sabe, eu fico muito angustiada. Eu observo e busco as relações, mas muita coisa não faz sentido no mundo

Nesse momento eu fiquei sem palavras. Eu não estava preparado com um repertório para convencer logicamente que o mundo é ilógico. Silêncio mortal…

Ela mesmo salvou a minha angústia daquele silêncio. O papo continuou. A fome pelo sentido é tão grande que ele até questiona os fundamentos do método de gerenciamento Scrum constrastando-o com conceitos da lógica de Aristóteles. Ela inclusive me mostrou um longo email que escreveu para Jeff Sutherland, o criador americano, achando falhas lógicas no conceito. Nota: o autor respondeu, mas esse é assunto para outro artigo…

Júlia estava angustiada porque precisava de respostas para os seus sérios conflitos. Lembrei de uma palestra do professor Clóvis de Barros Filhos que retrata bem a angústia sobre dilemas. Em outro contexto, mas com uma boa dose de analogia, aos 9min30s no vídeo abaixo, Clóvis afirma que qualquer dilema “pode ser problematizado de forma confiável e lúcida; nada é absolutamente deglutível sem um espírito crítico. Vale assistir o clipe aqui.

A beleza da reflexão lógica

Relembre a questão que Edson fez sobre diferenciar uma pessoa arrogante de uma assertiva. A pergunta revela um pouco a sua inabilidade de distinguir nuances da vida cotidiana. Os indivíduos com autismo tem dificuldade de entender piadas, ironias, palavras de duplo-sentido, entre outras, justamente por seu modelo lógico mais literal. Parece-me que dificuldade de Edson de diferenciar um assertivo de um arrogante é a mesma dificuldade de Alvin de definir a conjunção E ou OU entre persistência e lógica, e todos as outras relações no mundo que o deixa angustiado.

Entretanto, é louvável o desejo consciente deles em identificar vários conceitos e tentar correlacioná-los. Acredito que você não possua um décimo destes dilemas simplesmente porque nunca parou para pensar de forma séria a respeito. O que aconteceu para mim naquele dia foi um grande resgate ao pensamento mais crítico.

Se você que se orgulha da sua inteligência emocional, parabéns, deve se orgulhar mesmo – o mundo está cada vez mais complexo. Os melhores profissionais são aqueles que sabem ler o ambiente, administrar as emoções, motivar equipes, gerenciar conflitos, negociar efetivamente, entre outras qualidades. Por exemplo, leia aqui sobre a importância da auto-consciência.

Mas mesmo na era da inteligência emocional, fica o convite para você voltar as raízes do pensamento mais clássico e desafiar os seus modelos mentais com uma estruturação de raciocínio mais rigorosa. Poderíamos chamar isso de raciocínio crítico, pensamento crítico e pensamento claro. O raciocínio crítico envolve a capacidade de conceituar, analisar, questionar e avaliar ativamente e habilmente idéias e crenças. Ele inclui a capacidade de desenvolver um pensamento reflexivo e independente. Alguém com habilidades de pensamento crítico é capaz de:

  • entender as conexões lógicas entre as idéias
  • identificar, construir e avaliar argumentos
  • detectar inconsistências e erros comuns no raciocínio
  • resolver problemas sistematicamente
  • identificar a relevância e importância das ideias
  • refletir sobre a justificação das próprias crenças e valores

Como o pensamento crítico propõe seguir certas regras de lógica e racionalidade, algumas pessoas acreditam que ele dificulta a criatividade, que por sua vez exige exige a quebra de regras. Isso é um equívoco. O pensamento crítico é bastante compatível com o pensamento “fora da caixa”, desafiando o consenso e buscando abordagens menos populares com associações que também fazem sentido.

Além disso, o pensamento crítico aprimora as habilidades de linguagem e apresentação. Pensar de forma clara e sistemática pode melhorar a forma como expressamos nossas ideias. Ao aprender a analisar a estrutura lógica dos textos, o pensamento crítico também melhora as habilidades de compreensão.

Note a figura abaixo, retirada do relatório “The Future of Jobs” do World Economic Forum 2016 (com nova versão em 2018). O relatório mostra que o pensamento crítico (#2) cresce na importância no ranking das 10 habilidades mandatórias para ser bem sucedido no novo mundo do trabalho. Além disso, o capacidade de resolver problemas (#1) continua em primeiro lugar.  Criatividade (#3) e julgamento e tomadas de decisão (#7) também sobem no ranking. Ainda, inteligência emocional (#6) e flexibilidade cogntiva (#10) entram na lista.

Voltando ao autismo e a Specialisterne

Angústias a parte de Júlia, Edson e seus colegas, acho que todo mundo deveria se questionar mais. Fica a pergunta: você tem pensado de forma crítica nos últimos tempos? Talvez valha a pena conversar com jovem com autismo para ele te ensinar a ser mais coerente nos seus pensamentos e argumentações. (Alias, todo MBA renomado nos Estados Unidos exige que o candidato performe bem no prova do GMAT justamente porque ele mede a capacidade de entender as declarações e relações lógicas, fazer inferências, avaliar argumentos, entre outros).

Imagine um desses gênios ao seu lado, questionando seu dia a dia, sua equipe, com perguntas desconcertantes, com um olhar nos detalhes e na lógica que você não visualiza. Além de fazer bem para ele (pela inclusão e sentimento de ser útil), fará bem para a empresa (pela performance em certas tarefas).

Mas acima de tudo, essa convivência pode fazer bem a você. Ele pode tirá-lo da sua zona de conforto intelectual ao te desafiar a pensar de uma forma ao mesmo tempo diferente e estruturada. Se você for humilde o suficiente para admitir que há uma gama de competências cognitivas que você não domina, acho que você vai aprender mais com ele do que ensiná-lo.

Para finalizar, abaixo um vídeo que os próprios alunos da Specialisterne desenvolveram.

 

 

Boa jornada com seus novos pensamentos.


 

FERNANDO BARRICHELO é autor do livro Estratégias de Decisão. Formado em engenheria pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, possui pós-graduação em Administração de Empresas pela Fundação Getulio Vargas e Master in Business Administration (MBA) pela Carnegie Mellon University, nos Estados Unidos. Atua como executivo de uma grande corretora multinacional de seguros, consultoria e serviços, com passagens por outras grandes companhias nos segmentos financeiro, meio de pagamentos e industrial.
(Obs: as fontes deste artigo estão nos próprios links)
Comentários