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 por Fernando Barrichelo

Entenda como não entrar numa escala irracional

Um dos jogos que melhor representa uma escalada irracional é o leilão do dólar. Imagine que você está numa sala com outras 20 ou 30 pessoas. O jogo é o seguinte: leiloa-se uma nota de 1 dólar e, como em qualquer leilão, quem der o maior lance, ganha a nota. Por exemplo, se o maior lance for de 60 centavos, então paga-se 60 centavos para ganhar 1 dólar, ou seja, o prêmio líquido é de 40 centavos.

Mas o leilão não é exatamente assim. Existe uma característica que o distingue dos leilões tradicionais — quem der o segundo maior lance também é obrigado a pagar, mesmo sem levar a nota. Por exemplo, você dá o maior lance, de 30 centavos, e seu amigo ofereceu o segundo maior lance, de 20 centavos. Assim, os resultados são os seguintes:

  • O leiloeiro recebe os seus 30 centavos, os 20 centavos do seu amigo e paga a você 1 dólar (prejuízo final de 50 centavos).
  • Você paga 30 centavos e recebe 1 dólar (lucro de 70 centavos).
  • Seu amigo tem prejuízo de 20 centavos.

Qual o resultado de um leilão com esta regra adicional do segundo colocado também precisar pagar seu lance? O professor de economia Max Bazerman, em suas palestras e aulas, discute bastante o efeito deste leilão — uma escala irracional de lances altos. Em seu livro em coautoria com Margaret Neale, Negociando racionalmente, ele relata que fez várias vezes esse leilão utilizando uma cédula de 20 dólares e obteve resultados bem agressivos. Observe o relato de Bazerman: [VER NOTA 1]

Fizemos esse leilão com banqueiros da área de investimentos, consultores, médicos, professores, sócios das grandes seis empresas de auditoria, advogados e executivos de diversas áreas. As regras eram sempre as mesmas. Os lances começam rápida e ferozmente até chegarem à faixa de $12 e $16. Nesse ponto, todos, exceto os dois maiores arrematadores, caem fora. Os dois últimos arrematadores caíram na armadilha. Se um fez um lance de $16 e o outro de $17, o proponente de $16 pode fazer um lance de $18 ou arcar com uma perda de $16.

Nesse estágio, um deles acha que pode ganhar se a outra pessoa desistir. Como pode ser mais atraente continuar do que assumir tamanha perda, então o arrematador faz o lance de $18. Quando os lances são de $19 e $20, surpreendentemente, a lógica de arrematar por $21 é muito semelhante à usada para tomar as decisões anteriores — você pode aceitar uma perda de $19 ou continuar com a esperança de reduzir as perdas. Claro, o resto do grupo racha de rir quando os lances superam os $20 — e isso quase sempre ocorre. Obviamente, os arrematadores estão agindo irracionalmente.

Mas quais são os lances irracionais?Leitores céticos deveriam experimentar fazer o leilão com seus amigos, colegas de trabalho ou alunos. São muito comuns lances finais na faixa de $30 e $70, mas nosso leilão de maior sucesso chegou a $407 (os lances finais foram de $204 e $203). Nos últimos quatro anos já ganhamos mais de U$10.000 fazendo esses leilões em salas de aula.

Esse modelo de leilão foi usado pela primeira vez na década de 1970 por Martin Shubik, um dos pioneiros da Teoria dos Jogos e pesquisador da Universidade de Princeton. Claramente ele ajuda a explicar por que as pessoas entram numa escalada irracional com um compromisso de ação previamente selecionado. No início, o ambiente é cordial entre os participantes, pois não acreditam que os lances excederão o valor do objeto (nota de 1 dólar ou nota de 20 dólares). E, de repente, começa a haver um desconforto, pois em determinado momento percebe-se que o leiloeiro vai ganhar bastante (a soma do primeiro e do segundo lances). E chega o momento em que o primeiro e o segundo colocados percebem que a única coisa a fazer é minimizar a perda. E, para perder menos, a única estratégica é continuar oferecendo lances maiores. E fica declarada a escalada irracional.

O que fazer então? Obviamente, a chave do sucesso é reconhecer o leilão como uma cilada e nunca fazer um lance, por menor que seja. Como diz Bazerman, “administradores de sucesso devem aprender a identificar ciladas”. Na vida cotidiana, há exemplos disfarçados de leilão do dólar. Raul Marinho, no seu livro Prática na teoria, apresenta um exemplo interessante: [VER NOTA 2]

O leilão do dólar é uma aplicação derivada da Teoria dos Jogos que leva a aplicações práticas surpreendentes. As redes de TV se utilizam dela para formatar suas estratégias de programação. Repare que os programas hoje em dia são todos “colados” uns nos outros. Quando acaba uma novela, começa um telejornal; quando acaba o telejornal, começa um seriado; e assim por diante. E tudo isso sem intervalo, havendo, no máximo, uma vinheta. E o primeiro bloco do programa é, em geral, o mais interessante e longo. A ideia é induzir o telespectador a “entrar no leilão”. Depois que ele entra, existe uma grande chance de que ele veja o programa até o fim, mesmo que os comerciais sejam frequentes e longos. Após cerca de 15 minutos, o telespectador rompe a “barreira de 1 dólar” e, pelo mesmo motivo que ninguém sai do cinema antes de o filme (mesmo que ache péssimo) acabar, também tende a assistir ao programa até o fim.

O leilão do dólar pode ser bem definido pela frase “investi demais para desistir”. É por isso que ele é encontrado em várias cenas empresariais, como investimentos crescentes em projetos que estão indo mal ou mesmo guerras de preços intermináveis.

Para eliminar essa escalada inicial é necessário compreender alguns fatores psicológicos. As pessoas não desejam admitir suas falhas. Gostam de aparentar coerência, e o curso de ação coerente é aumentar seu compromisso com ações anteriores. Portanto, para ser um bom estrategista, lembre-se sempre dessa analogia com o leilão do dólar e saiba que a melhor estratégia é identificar essas armadilhas e não entrar nelas.


NOTAS:
[ 1 ] BAZERMAN, M. H.; NEALE, M. A. Negociando racionalmente. São Paulo: Atlas, 1998
[ 2 ] MARINHO, R. Prática na teoria: aplicações da teoria dos jogos e da evolução aos negócios. São Paulo: Saraiva, 2011

 

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