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 por Fernando Barrichelo

Conheça o Jogo do Ultimato e como ele é contraintuitivo

O jogo do ultimato é um famoso experimento utilizado por pesquisadores da Teoria dos Jogos. Karl Sigmund, Ernst Fehr e Martin Nowak, no artigo “The economics of fair play“, publicado na revista Scientific American, discute por que preferimos justiça e cooperação no lugar de autointeresse racional.

Imagine uma situação em que você e um desconhecido estão em salas separadas, sem poder trocar informações. Um sorteio com uma moeda decide qual de vocês fará uma proposta para dividirem $100. Digamos que você ganha. Então você deve fazer uma simples proposta de como dividir o dinheiro entre vocês dois, e a outra pessoa só poderá dizer sim ou não. Ela também conhece as regras e o total de dinheiro a ser dividido.

Se a resposta for sim, o negócio é feito. Se a resposta for não, ninguém ganha nada. Em ambos os casos, o jogo termina e não pode ser repetido. O que você faria? Instintivamente, muitas pessoas entendem que devem oferecer 50% porque a divisão seria justa e provavelmente seria aceita. Outras pessoas mais audaciosas acham que devem oferecer menos que a metade.

Antes de responder, você deve se perguntar o que faria se você fosse o respondente. Se lhe for oferecido 10%, você aceitaria $10 para o outro ficar com $90 ou preferiria não ganhar nada? E se fosse 1%? Seria $1 ou nada. Lembre-se: pechinchar e conversar é proibido. Ou você aceita ou rejeita, e o jogo acaba.

Então, qual seria a sua oferta? Você se surpreenderá com o resultado de vários experimentos:

  • Dois terços das pessoas consultadas ofereceram entre 40% e 50%
  • Apenas 4% ofereceu menos que 20%
  • Mais da metade rejeitou ofertas de menos de 20%

Propor uma quantia muito baixa é arriscado, pois pode ser rejeitada. Mas aqui está o enigma: por que alguém rejeitaria uma oferta baixa? O respondente só tem duas opções: ou aceita algo ou fica sem nada. A única opção economicamente racional é aceitar, pois $1 é melhor que nada.

Um proponente egoísta que está seguro de que o respondente é egoísta irá fazer a menor oferta possível e ficar com o resto.

Na análise da Teoria dos Jogos, que assume que pessoas são racionais e têm autointeresse, tudo indica que o proponente deve oferecer o menor valor possível, pois o respondente vai aceitar. Mas não é assim que a maioria das pessoas joga esse jogo.

A teoria econômica entende que indivíduos racionais fazem escolhas para maximizar seus ganhos. Mas a experiência com esse jogo mostra que as pessoas são reguladas e influenciadas tanto por emoções como pela lógica fria e o autointeresse. Esse jogo foi testado várias vezes e em muitas culturas e países, sempre com o mesmo resultado. Em todos eles houve um contraste impressionante entre o que maximizadores de resultados deveriam fazer e o que realmente fizeram, que foi propor resultados mais justos. Assim como na vida real, há muitas situações que envolvem o dilema entre o egoísmo e a justiça, entre cooperação e competição.

Mas ficam algumas questões. Imagine que um colega lhe peça colaboração em um projeto. Você ficará feliz em ajudar e espera um retorno justo do seu investimento de tempo e energia numa oportunidade em que você precisar. Mas no jogo do ultimato, entretanto, as regras não são as mesmas que na vida real, como: (1) pechinchar não é possível, (2) as pessoas não se conhecem, não se veem e não saberão quem são após o experimento, (3) o dinheiro desaparece, se não aceitarem, (4) o jogo nunca será repetido. Na vida real, a colaboração existe porque há afinidade e porque um ajuda o outro em diferentes momentos. Na vida real, se você fizer uma retaliação, sofrerá consequências do seu egoísmo no futuro. Mas no jogo do ultimato, não.

Por que as pessoas agem de forma diferente?

Os economistas exploraram esse jogo com outras variações para observar os resultados. Numa delas, quando o proponente não é escolhido por sorteio, e sim por melhor performance numa prova, as ofertas são frequentemente mais baixas e são mais aceitas – a desigualdade é sentida como justificada e merecida. Uma das conclusões a que se chegou foi que nos jogos em pares, como esse, as pessoas não adotam a postura pura de autointeresse, mas consideram a visão do parceiro. Elas não estão interessadas apenas no próprio resultado, mas comparam com o do parceiro e com uma situação justa.

Por que nós valorizamos tanto a justiça a ponto de rejeitar 20% de uma boa quantia só porque o outro jogador levará quatro vezes mais? As opiniões são divididas. Alguns especialistas em Teoria dos Jogos acreditam que esses indivíduos falham no entendimento de que o jogo ocorrerá uma única vez. Assim, os jogadores consideram a aceitação ou a rejeição simplesmente como a primeira fase de um processo de barganha.

A pechincha, a barganha, enfim, a negociação sobre partes de recursos, é um tema recorrente desde os nossos ancestrais. Mas por que é tão difícil entender que o jogo do ultimato é um jogo de uma interação apenas? Existem evidências, em outros jogos, de que as pessoas conhecem as diferenças entre encontros repetidos e os de uma jogada só. Uma explicação sugerida pelos pesquisadores é baseada no estudo de um modelo evolucionário: nosso aparato emocional tem sido assim moldado por vivermos em pequenos grupos há milhões de anos e, por isso mesmo, ser difícil manter segredos. Nossas emoções não são ajustadas para interações em condições de anonimato absoluto. Nós temos a expectativa de que nossas decisões serão observadas por nossos amigos, colegas e vizinhos.

Se os outros descobrem que eu fico contente com uma pequena divisão, eles provavelmente vão me fazer uma oferta baixa. Se sou conhecido por ficar bravo quando recebo uma oferta pequena, posso receber ofertas maiores. Assim, a evolução deve ter criado respostas emocionais para baixas ofertas. Como interações de uma só jogada são raras ao longo da evolução humana, essas emoções não discriminam interações repetitivas das únicas. Essa é provavelmente uma das explicações para muitos responderem emocionalmente a baixas ofertas no jogo do ultimato. Sentimos que devemos rejeitar uma oferta baixa para manter nossa autoestima. Do ponto de vista evolucionário, essa autoestima é um mecanismo interno para adquirir reputação, que será benéfica em futuros encontros.

O jogo do ultimato até hoje intriga os pesquisadores, pois as experiências mostram que nem todos agem de forma racional e, no fim, prejudicam-se. Quem prefere ficar com nada do que com $10 faz isso para punir o outro jogador, que ficará com zero, mesmo que essa punição não seja educativa, uma vez que não haverá uma segunda rodada. Há doadores que não acham justo fazer uma divisão desigual por motivos humanísticos e há os que ficam com medo de o parceiro rejeitar uma proposta desigual; por isso, melhor ficar com $50 do que correr o risco de ficar sem nada.

De qualquer forma, o mundo real é complexo mesmo, e ter um bom raciocínio estratégico ajuda, nesses casos, a conseguir identificar, por exemplo, se o jogo é anônimo, se você conhece o perfil do adversário, se podem combinar antes ou se os jogos serão repetidos. Mais uma vez, independentemente da solução “racional-matemática”, este é mais um exemplo de como é importante conhecer o outro jogador e os reais incentivos dele.

CURIOSO? Se você gostou do assunto, talvez se interesse por entender o Paradoxo do Chantagista, uma variação do Jogo do Ultimato mas com um tempero mais dramático, onde questionamos: é melhor pouco do que nada? Clique aqui.

 


NOTAS:
[1] SIGMUND, K.; FEHR, E.; NOVAK, M. A. “The economics of fair play: Biology and economics may explain why we value fairness over rational selfishness”. Scientific American Magazine, jan. 2002. Disponível em: <https://www.scientificamerican.com/article/the-economics-of-fair-pla/>. Acesso em: 25 out. 2016.
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