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 por Fernando Barrichelo

Por dentro da mente de Amós Oz

Se você gosta de conhecer melhor a mente de escritores famosos, esta é uma oportunidade. O autor israelence Amós Oz, em seu livro Do que é feita a maçã, fornece uma série de entrevistas muito interessantes sobre vários temas. Uma delas é sobre como ele desenvolveu seu gosto pela literatura e seus rituais, bloqueios e paixões.

Para faciltar ao leitor, eu transcrevi, adaptei e encurtei um dos capítulos com os melhores insights. O relato é encantador. Confira.


1. O que impulsiona a sua mão quando escreve?

No pátio do ginásio Rechavia, em Jerusalém, havia um eucalipto no qual alguém tinha gravado um coração trespassado por uma flecha, e escrito em cada um dos lados: Gadi – Ruti. Eu tinha talvez uns treze anos e pensei: com certeza quem fez isto foi esse Gadi, não Ruti. Por que ele fez isso? Ele não sabia que amava Ruti? Ela não sabia que ele a amava? E parece que já então eu disse comigo mesmo: talvez algo dentro dele soubesse que isso iria passar, que esse amor ia acabar. Ele quis deixar alguma coisa. Quis que restasse uma lembrança desse amor quando ele passasse.

Isso é muito parecido com o ímpeto de escrever histórias: salvar alguma coisa das garras do tempo e do esquecimento. Sem falar no desejo de dar uma segunda oportunidade aquilo que não terá nunca mais uma segunda oportunidade. A força que impulsiona esta mão que escreve é o desejo de que não se apaguem.


2. E você sente que suas motivações para escrever tem mudado no decorrer dos anos, ou são basicamente as mesmas?

Acho que são as mesmas, mas não tenho certeza. Quase nunca me pergunto quais são minhas motivações para escrever. Quando me sento aqui antes das cinco horas da manhã, depois da caminhada pelas ruas desertas, com o primeiro café, nunca me pergunto quais são as motivações. Simplesmente escrevo.


3. Mas você se pergunta de onde vem a história?

Tenho vivido a vida toda uma vida de espião. Ouço conversas que não são minhas, olho para pessoas estranhas, e quando estou na fila do posto de saúde, ou na estação ferroviária, ou no aeroporto – nunca fico lendo jornal. Em vez de ler um jornal eu ouço o que as pessoas estão falando, surrupio pedaços de conversas e as completo. Ou olho para as roupas, ou para os sapatos – os sapatos sempre me contam muitas coisas. Olho para as pessoas, presto atenção.

Meu vizinho me dizia: toda vez que passo pela janela do quarto em que o Amos escreve eu me detenho um momento, pego um pente e me penteio, pois se eu entrar numa história do Amos, quero entrar penteado. Tremendamente lógico, mas não é assim que funciona comigo. Vamos dizer, tome uma maça. Do que é feita a maçã? Água, terra, sol, uma macieira e um pouco de adubo.

Mas a maçã não se parece com nenhuma dessas coisas. É feita delas, mas não se parece com elas. Assim é uma história, que com certeza é feita de uma soma de encontros, experiências e atenções.

Meu primeiro impulso é o de adivinhar o que eu sentiria se fosse ela. O que estaria pensando e querendo? Do que eu me envergonharia? O que o gostaria que ninguém soubesse a meu respeito? O que eu vestiria? Essas perguntas sempre me acompanharam, ainda antes de eu começar a escrever histórias desde a infância.


4. Conte mais sobre isso.

Eu era filho único e não tinha amigos. Meus pais me levavam ao café e me prometiam um sorvete se eu ficasse quietinho enquanto eles conversavam com os amigos deles. Sorvete era uma coisa rara em Jerusalém. Não porque fosse muito caro, mas porque todas as nossas mães achavam sorvete é inflamação na garganta, e inflamação é infecção, e infecção é gripe, e gripe é angina, e angina é bronquite, e bronquite é pneumonia, e pneumonia é tuberculose. Resumindo – ou era o sorvete ou era o filho.

Mas mesmo assim me prometiam que daquela vez me comprariam um sorvete se não os perturbasse enquanto conversavam. Eles conversavam com os amigos pelo menos 77 horas sem interrupção. Eu, para não enlouquecer de tanta solidão, simplesmente comecei a espionar os que estavam nas mesas vizinhas. Captava trechos de conversas, ficava olhando. Quem pedia o que ao garçom? Quem pagava? Tentava adivinhar quais eram os laços entre aquelas pessoas em torno da mesa vizinha, tentava até mesmo imaginar, de acordo com seu aspecto e sua linguagem corporal, de onde vinham, como era a casa deles.

Faço isso até hoje. Mas não se trata de eu tirar uma foto, voltar para casa, revelar o filme, e temos uma história. No trajeto tem muita coisa rolando. Por exemplo, em “A caixa-preta”, tem um rapaz que tem o hábito de coçar a orelha direita com a mão esquerda, passando-a por trás da cabeça. Uma mulher me perguntou de onde eu tinha tirado isso, pois ela também conhecia alguém que coçava a orelha direita com a mão esquerda por trás da cabeça. Eu respondi que tinha quase certeza de que tinha visto isso alguma vez e ficou gravado em mim, mas onde tinha visto? Você vai me matar, mas eu não sei. Veio de alguma lembrança remota. Não veio do ar, mas não tenho ideia de onde foi.

Vou te dizer uma coisa, quando escrevo uma história, uma das coisas que impulsionam esta mão é a curiosidade. Uma curiosidade impossível de satisfazer. Fico tremendamente curioso por entrar na pele das pessoas. Acho que a curiosidade não só é uma condição necessária a todo trabalho intelectual, mas também uma qualidade moral. Eu realmente acho que um homem curioso é um cônjuge um pouco melhor do que um homem não curioso, e também um pai um pouco melhor. Não ria de mim, mas penso que um homem curioso é até mesmo um motorista um pouco melhor na rua ou na estrada do que um homem não curioso, porque ele se pergunta o que quem está dirigindo na faixa paralela é capaz de fazer de repente.


5. Hoje você é um escritor muito conhecido. O “contato com a realidade” fica mais problemática com o passar do tempo?

Não. Raramente sou reconhecido nos lugares em que fico observando as pessoas. Se vou a um restaurante, as vezes me reconhecem. Se estou na universidade, me reconhecem. Na oficina mecânica ou na fila do posto de saúde quase nunca me reconhecem. Num café, me sento do lado de fora, e se estiver fazendo frio, numa varanda envidraçada. Sou capaz de ficar sentado sozinho duas ou três horas, olhando para estranhos. Existe algo mais interessante que isso?


6. E quando você volta do café ou da fila no posto de saúde para sua escrivaninha, existem rituais fixos relacionados a escrita?

Meu ritual consiste em que tudo esteja em seu lugar. O tempo todo, que tudo esteja em seu lugar. Isso amargura a vida da minha família. O tempo todo eu ponho coisas em seu lugar. Nili, minhas filhas, meu filho, os netos, até mesmo visitas, começam a tomar um café, interrompem por um instante, vão atender o telefone, quando voltam seu café já foi derramado na pia, a xícara foi lavada e emborcada no escorredor. Sempre ficavam zangados comigo. Tudo que está sobre superfícies é logo removido de lá: chaves, documentos, cartas, bilhetes, qualquer coisa sobre uma superfície vai rapidinho para dentro de uma gaveta. Sem misericórdia.

Meu pai era bibliotecário, meu genro foi bibliotecário, minha cunhada é bibliotecária, minha mulher é arquivista. Então, o que é que você queria? Até o meu gato arruma a comida dele no prato. E se ele não arrumar, eu arrumo para ele.

Meu dia começa cedo. É muito raro em minha vida que tenha escrito algo durante a noite. Mesmo que eu não durma a noite, não escrevo. Só de manha.


7. Você escreve a mão ou no computador?

Escrevo muitos rascunhos a mão. Não copio de um rascunho para outro, e sim escrevo um trecho e ponho na gaveta, escrevo novamente e ponho na gaveta, e escrevo outra versão da mesma cena. Quando na gaveta há quatro, cinco, as vezes até mesmo dez versões, eu tiro todas, faço com elas uma longa fileira sobre a mesa e aproveito alguma coisa de cada uma, e talvez esta seja a versão corrigida, que eu mesmo digito no computador.


8. E antes de escrever, você faz as suas caminhadas matinais.

Sim. Todo dia. Caminhar ajuda a por as coisas em proporção. O que é mais importante? O que não é importante? O que será esquecido em alguns dias? Eu caminho até mesmo antes do café. Me levanto, tomo um banho de chuveiro, me barbeio e saio. As quatro e quinze já estou na rua, quinze para as cinco estou de volta. Pouco antes das cinco, lá fora a escuridão ainda é total, eu já estou com um café bem forte junto a esta mesa. Este é o meu horário. Este é todo o ritual.

Eu não sofro, para mim não é difícil acordar as quatro da manhã. Acordo sem despertador. No sábado também, nos feriados também. O telefone não toca, Nili dorme, e se tem outras pessoas na casa, estão dormindo também. São as horas nas quais ninguém precisa de mim. Aqui eu as vezes caminho no parquinho, ou à toa pelas ruas, pois acho isso interessante. As janelas estão escuras, a não ser quando deixam a luz do banheiro acesa. Muita gente deixa a luz do banheiro acesa durante a noite. Talvez achem que isso vai atemorizar os ladrões. Ou talvez deixem a luz acesa para o caso de o filho acordar no meio da noite. Talvez achem que a morte não virá se a luz do banheiro estiver acesa.

Uma vez havia uma mulher numa janela iluminada, as quatro e meia da manhã, olhando para a escuridão. Eu parei e fiquei olhando para ela de dentro da escuridão. Olhava para ela da escuridão e perguntava a mim mesmo o que lhe teria acontecido a uma hora daquelas. Depois ela se afastou da janela e apagou a luz, ou ficou lá olhando para a escuridão, e eu continuei a caminhar, mas sai de lá com a primeira semente de uma história. Que ainda não escrevi. Talvez escreva um dia, talvez nunca.


9. E nessas horas você pensa no que vai escrever?

Sim, eu penso no que está me esperando na mesa. Porque quase sempre estou no meio de alguma coisa. Penso então onde estava ontem, onde interrompi, aonde quero levar. Nem sempre o que penso é o que vai acontecer, mas, de algum modo, eu trago as pessoas, trago os personagens. Por exemplo, o Moshe, do livro “Taltalim”, durante toda a história não diz mais do que cinco ou seis palavras, e também se mostra bastante repugnante no geral. Fisicamente também é bem repulsivo. Mas sabe de uma coisa, eu sabia um pouco mais sobre ele. Sei sobre todos os meus personagens muito mais do que escrevi a respeito deles. Sobre todos. Sobre a infância deles, sobre os pais deles, sobre as fantasias eróticas deles. Só que eu não utilizo tudo o que sei a respeito deles. E quando estava escrevendo “Taltalim” sabia até da outra mulher que Moshe encontrou para ele em Netanya. Não inclui isso na história, desde o início estava claro para mim que isso não entraria na história, mas eu queria saber um pouco mais, o que aconteceu ali, que tipo de homem ele é e quais são as queixas que tem da Bracha.

Eu precisava saber tudo isso. Não em benefício da história. Apenas para que houvesse tecido bastante para dele cortar e fazer a roupa. É mais ou menos assim.


10. Adaptaram alguns de seus livros para o cinema. Para você, deve ser estranho ver esses filmes.

Há uma espécie de parede de vidro, parece que conheço aquilo, mas não é meu. Dan Wolman filmou uma versão de “Meu Michel”. Esse filme envelheceu com dignidade. Foi feito com um orçamento risível, minimalista, e assim mesmo resiste bem.

Me lembro de ter dito depois de assistir ao filme: é tão bonito e tocante, mas tão estranho para mim – como se eu tivesse composto uma obra para violino e de repente a estivessem tocando para mim ao piano.


11. Você nunca se envolveu na criação de um roteiro baseado num livro seu, certo?

Mais de uma vez me pediram que me envolvesse. Natalie Portman, por exemplo, queria muito que eu participasse na escrita do roteiro de “De Amor e Trevas”. Recusei. Para mim, escrever um roteiro é uma arte diferente da minha. Muita gente hoje escreve contos e romances usando o presente do indicativo, como se estivesse escrevendo um roteiro. Isso talvez seja um sinal de que essas pessoas na verdade queiram escrever para o cinema. Não tem os meios, não tem dinheiro para investir, mas seus olhos estão voltados para o cinema e não para a literatura. Talvez esses escrevedores tenham assistido a muitos filmes e lido pouca literatura. Não estou dizendo que não haja obras maravilhosas escritas no presente do indicativo, mesmo na literatura, mas o tempo natural no qual transcorre a literatura é o passado.

Por isso chamam a isso story ou history. Escritores são essas pessoas defeituosas que nascem com a cabeça e o pescoço virados para trás.


12. Você realmente não Iê os seus livros depois que são publicados?

Ler uma página que você escreveu é como ouvir sua voz numa gravação: é estranho, constrangedor. Se às vezes eu abro um livro meu, acontece uma das duas coisas: ou fico frustrado porque vejo que hoje eu poderia escrever aquilo melhor, ou fico frustrado porque acho que nunca mais escreverei tão bem. Em ambos os casos eu me frustro, então por que ler aquilo? A única exceção é “O Mesmo Mar”, ao qual eu volto, sim, porque não acredito muito que o tenha escrito. Não o vejo como sendo um livro meu. Não sei de onde ele veio. Ele passou por mim e saiu do outro lado.

Ele é o único de meus livros ao qual eu posso voltar, eu até me entusiasmo um pouco. Eu o leio e fico admirado. Não é modesto dizer isso, mas para mim, este livro está bem escrito.

Olho para ele como uma vaca que pariu uma gaivota.


13. E com o passar dos anos fica mais fácil escrever? Tenho a impressão de que no seu caso a resposta é não.

Sua impressão está correta. As pessoas pensam que se alguém escreve livros durante cinquenta anos, como eu, fica mais fácil com o tempo. Parece que isso é verdade em quase todas as profissões. Para um marceneiro, fazer sua trigésima mesa com certeza é mais fácil do que fazer a primeira, e para um cabeleireiro, ou o vigésimo corte de cabelo será mais fácil de fazer que o primeiro. Talvez em pesquisas também a experiência acumulada ajude a abreviar processos; já se sabe onde buscar.

No romance ou no conto não, por duas razões: uma, eu não quero escrever a mesma história duas vezes. Tem escritores que fazem isso. Principalmente quando tem sucesso com um livro, eles o escrevem mais e mais uma vez. A segunda razão: escrever é como dirigir o tempo todo com um pé no acelerador e outro no freio.

O pé no acelerador é feito de ingenuidade, de entusiasmo, da alegria da escrita. O pé no freio é feito de autoconsciência e autocritica. Com os anos, quando se adquire mais consciência da escrita e de si mesmo, o pé no freio fica cada vez mais pesado e o pé no acelerador cada vez mais hesitante, e isso é muito ruim, é ruim para o motorista e não é saudável para o veículo.

Tudo que você escreveu antes surge diante de você. O tempo não traz nem mesmo autoconfiança. É um pouco como aquilo que se diz a um detento na delegacia de polícia: “Tudo que você disser poderá ser usado contra você”.


14. A questão da concessão na escrita me interessa. Quando a resposta é: “preciso perseverar pois em algum lugar se esconde uma solução melhor”, e quando a resposta é: “preciso parar, fazer concessões e seguir em frente” ?

Vou te dar mais um exemplo de uma passagem na narrativa em que fiz uma concessão difícil em “Judas”. Quando Shmuel se prepara para ir a biblioteca para se despedir de Wald, de repente Wald vai até ele. É um trecho curto, menos de meia página, quando no fim Wald lhe dá um beijo na testa. Isso é uma concessão. Eu não queria que se despedissem assim. Eu queria algo mais forte que isso. Tentei durante muito tempo e muitas vezes. Escrevi mais uma vez e mais uma vez. Na maioria os rascunhos eram mais longos do que o que está no livro, mas não melhores. Dostoievski faria muito melhor do que eu essa despedida. Eu queria muito que houvesse algo um pouco cômico nessa cena, mas fiz uma concessão.

Sabe, em todo livro há pelo menos três livros: o livro que você leu, o livro que eu escrevi, que tem de ser diferente do livro que você leu, e também um terceiro livro – o livro que eu escreveria se tivesse força o suficiente. Asas o suficiente. Esse livro, o terceiro, é o melhor dos três. Mas no mundo inteiro não há ninguém além de mim que conhece este terceiro livro e não há ninguém além de mim que está de luto por ele.

Considerando tudo, parece que ficou boa essa cena da despedida de Shmuel e Wald, não me envergonho dela, mas se houvesse ali algo um pouquinho humorístico, ela seria ainda melhor. Não sei, talvez haja no mundo escritores, artistas, que nunca fazem concessões.

Não sei, por exemplo, se Bach fez ou não concessões. Será que a música que tinha na cabeça era a música que compunha? No meu caso, sei que sem fazer concessões não é possível terminar nenhum trabalho. Nenhum trabalho. Mas isso vale para tudo. Tem gente que pensa que concessão é palavrão. Principalmente jovens idealistas entusiasmados pensam que concessão é uma espécie de fraude, falta de integridade, oportunismo. Não para mim. Para mim a palavra concessão é sinônimo de vida. O contrário de concessão é fanatismo e morte.


15. Fale mais sobre a concessão.

Quando digo concessão não estou dizendo: ofereça a outra face. Não estou dizendo que se anule a si mesmo em prol de seu parceiro, seu filho, seus pais ou seus vizinhos. Estou dizendo: tente tatear o caminho, talvez chegue a alguma coisa a um terço do caminho, ou dois terços, ou a meio caminho. É assim também no trabalho: não saiu como você queria? Tente chegar ao melhor acordo possível, insistir ao máximo.

Talvez como Eshkol fazia. Ele tinha uma frase excelente. Mais ou menos assim: todos riem de mim por eu ser alguém que faz concessões, e realmente sou. Se não me dão tudo que quero, faço uma concessão. E se não for suficiente, faço mais uma concessão. Se isso tampouco for suficiente, faço uma terceira concessão, até conseguir aquilo que queria.

Gosto de um artigo de Assaf lnbari, intitulado “Abençoar o terminado”, no qual ele escreve que terminar uma obra é se despedir dela e a decisão criativa mais importante, e a mais difícil – por causa da concessão de que falamos, por causa do desejo de continuar e aprimorar até o infinito.


16. Existem áreas em sua vida em que você não faz concessões?

Sim. Posso te dizer, por exemplo, que nunca em minha vida, nem uma só vez, recebi de nenhum editor um adiantamento por algum livro. Nem mesmo quando saímos de Hulda sem um tostão, e tanto eu como minha mulher já estávamos com 47 anos. Não tínhamos nada, e de repente a editora propôs me dar um adiantamento pelo livro seguinte, e eu recusei. Porque um adiantamento necessariamente me condiciona a uma data. Por exemplo, eis aí uma coisa em relação a qual nunca fiz concessão. Me amedronta muito ter uma data em que você tem de terminar. Isso me paralisa. Os trabalhos na universidade foram a última vez que trabalhei com uma data-limite, que é como um telhado que esta para desabar em cima de sua cabeça e já começam a cair dele pedaços de cal e blocos de gesso.


17. Quando é que você sabe que terminou de escrever um livro?

Quando já não consigo mais olhar para ele. Entrego os originais para um editor ou uma editora. Então, é claro que sei que isso não é a melhor coisa que escrevi em minha vida. Começo a ficar de luto pelo terceiro livro, o livro que não consegui escrever, o filho que não nasceu. Mas sinto no mesmo instante que era a melhor coisa que eu poderia ter escrito naquele momento. E uma espécie de mantra, assim: “É o melhor que eu pude fazer neste momento. Já fiz coisas melhores antes; no futuro, quem sabe; mas agora é o melhor que pude fazer. Não é um álibi, eu sei, não dá para eu dizer isso para a polícia, ou para a crítica, mas me acalma. Mais do que isso não sou capaz de fazer agora.

Quando estou escrevendo, bem no fundo do coração, sei que não vai sair do jeito que enxergo e ouço. Isso eu já sei por antecipação. Talvez por experiência. Não pode sair exatamente, exatamente, como queríamos que saísse. Mas o que é que sai exatamente como queríamos? A gente viaja pela primeira vez para o exterior. Que emoção, que tensão, a gente não dorme a noite inteira, e se a gente não acordar, e se o despertador não tocar, e depois a gente volta e sabe que foi bonito e cheio de vivências, mas não foi nenhuma epifania.


18. Você me disse que há livros ou histórias que você começa e abandona. Por que eles não conseguem chegar perto desse terceiro livro que você mencionou? Você simplesmente não gosta deles? 

É o seguinte. Todos os anos eu tenho trabalhado duro. Houve tempo em que trabalhava muitas horas por dia, agora apenas três, quatro horas pela manhã, mas trabalho todos os dias. Isto é, não escrevo livros em surtos de inspiração, como se de repente a musa baixasse em mim e eu me sentasse para escrever um livro, e depois de alguns anos a musa tivesse desaparecido e eu fosse correndo consultar um psiquiatra para lhe dizer que tenho um bloqueio e não consigo escrever. Isso não aconteceu comigo. Nem psiquiatra nem bloqueio. Não sei o que é isso. Eu sempre escrevo.

Mas durante as dezenas de anos em que escrevo tive muito mais apagões e abortos do que partos. Quando é que isso acontece? Quando é que eu percebo um sinal de que tenho de jogar aquilo fora? Resposta: é quando eu fico escrevendo e escrevendo e escrevendo e as páginas vão se acumulando e os personagens fazem o tempo todo tudo que eu quero. Quer dizer, o bebê não está começando a me dar chutes dentro da barriga. Eu então compreendo que ele não está vivo.

Quando tudo está me saindo muito fácil, como massinha de modelar – entre, saia, sentem, vão para a cama, transem – e sinal de que não está legal. Quando é que está legal? Quando é que o feto está vivo? É quando eles começam a se opor a mim. Quando eu estava escrevendo Meu Michel, Hana me arrastou para uma cena que não combinava com a personagem, eu disse a ela: sinto muito, não vou escrever isso, não é do seu caráter. Ela então me diz, no meio da escrita: você cale a boca e escreva. Você não vai me dizer o que o que é não é de meu caráter. Eu digo a ela, não, me perdoe, mas você quem é minha heroína, não sou eu que sou seu herói. Você trabalha comigo, eu não trabalho com você. Ela me diz: deixe-me em paz. Não se apodere de mim. Deixe-me viver e não perturbe. Eu decido quem sou e o que faço ou não faço. Eu lhe respondo: sinto muito, isso eu não vou escrever, e se não lhe agrada – procure outro autor, não me de ordens. Este livro é meu, não seu. E assim essa Hana fica teimando e eu também fico teimando, e aí eu sei que a história está viva.

Mas se estou escrevendo há um mês, dois meses, e os personagens estão obedientes demais, eu compreendo que o bebê não está vivo. É preciso descartar tudo. É preciso entrar numa nova gravidez.

 


REFERÊNCIAS
1. AMÓS OZ, Do que é feita a maça. Seis conversas sobre amor, culpa e ouros prazes. Companhias das Letras. 2018.

FERNANDO BARRICHELO é autor do livro Estratégias de Decisão (www.estrategiasdedecisao.com). Formado em engenharia pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, possui pós-graduação em Administração de Empresas pela Fundação Getulio Vargas e Master in Business Administration (MBA) pela Carnegie Mellon University, nos Estados Unidos. Atua como executivo de uma grande corretora multinacional de seguros, consultoria e serviços, com passagens por outras grandes companhias nos segmentos financeiro, meio de pagamentos e industrial.
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